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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O L E I T O R (excertos) de Teolinda Gersão

Sempre gostei de ler e nunca pensei que daí me pudesse vir algum mal. (...)
Ler era mais urgente do que tudo, varria-me o que trazia na cabeça – fadiga, preocupações, ansiedade, as coisas ruins do dia.
Frequentemente a vontade de saber o fim da história não me deixava parar antes da última página. Houve ocasiões em que adormeci de estômago vazio, vestido, sem tomar banho nem apagar a luz. O livro caía-me da mão, quando o sono me vencia. (...)
Quais são os (livros) que prefiro? Policiais, claro, gosto sobretudo de policiais. De Agatha Christie, especialmente. (...) Não há como os policiais para nos levarem para longe de onde estamos. Não é que eu não gostasse de ser maquinista. Mas é uma vida solitária, conduzir comboios. Está-se no meio da gente, mas sozinho, e quase não se fala com ninguém. (...)
As ruas à chuva. Também nos livros de Agatha Christie muitas vezes chovia. Não, eu nunca tinha ido a Inglaterra. Gostaria de ver Londres, mas também gostaria de ver o campo, sempre ouvira gabar o campo inglês.
Agatha Christie também devia gostar do campo, porque a maior parte dos seus livros se passa em pequenas localidades provincianas, onde todas as pessoas se conhecem, têm estas profissões ou aquelas, estes hábitos, defeitos, virtudes e tiques, moram em casas com jardim, têm determinado tipo de cortinas, mobílias de estilo ou móveis antiquados, e muitas vezes chuva nas janelas.
À primeira vista tudo aquilo nos é familiar, porque as personagens são iguais a qualquer pessoa, (...) parecem-se connosco ou com alguém que conhecemos, e por isso são-nos simpáticas. (...)
As pessoas têm histórias, culpas, terrores, vícios secretos. Todas elas escondem qualquer coisa. (...)
Ler é uma excelente forma de passar o tempo, sempre achei. Na última página fico do lado dos inocentes e felizes. A história acabou e tive a sensação da curiosidade satisfeita, porque fiquei a saber tudo. Ponto final. Posso passar a outro livro, outra aventura. (...)
Pensei estas coisas e outras, um dia e outro dia, enquanto s estações se sucediam, e o comboio deslizava sobre as linhas.
E assim poderia ter continuado, se de repente não me assaltasse a ideia de que podia trazer um livro, abri-lo no tablier ou sobre os joelhos, e ir lendo, um instante aqui e outro ali, quando o comboio parava. (...)
Foi esta ambição que me perdeu. A princípio tudo ia bem, cheguei a ler vários livros deste modo, aproveitando os segundos, nas paragens. Mas depois isso não me pareceu suficiente para a minha fome de leitura, e experimentei continuar a ler dentro do túnel, depois de pôr de novo o comboio em marcha. Era perfeitamente possível, verifiquei com surpresa e regozijo, porque grande parte da condução era automatizada.
Nessa altura senti-me no melhor dos mundos e felicitei-me por ser tão inteligente. Conseguia fazer o que mais gostava, dedicar-me a um passatempo nas horas de trabalho, e para cúmulo ainda era pago por isso. (...)
O que falhou então? Uma coisa mínima, ridícula: a fita magnética descontrolou-se e ficou uma estação atrasada. (...)
Não dei conta, embrenhado na leitura não ouvia a voz da gravação. (...) Foi esse pormenor que me perdeu. (...)
Ninguém se incomodou – excepto um dos passageiro, que se fixou nesse detalhe e veio até à cabine onde eu estava, para me avisar do descontrole da fita.
Imagino que abriu a boca, certamente para dizer isso, mas não disse nada, ficou de boca aberta, do lado de lá do vidro, a olhar para mim e para o livro que eu tinha aberto em frente. (...)
Perdi o emprego e, segundo parece, ainda tive sorte de não ter sido julgado por pôr em risco a vida alheia, e ser considerado candidato a homicida. (...)
Aparentemente, agora teria muito tempo para ler. No entanto tudo o que leio são anúncios – essa preocupação, e a ida a algumas entrevistas que terminam sempre em exclusões, ocupa-me os dias.
No entanto, mesmo que tivesse muito tempo para mim, não sei se leria como antes. Embora me envergonhe de o dizer, tenho uma saudade imensa de ler na cabine do maquinista. Não porque quisesse pôr em risco a vida de ninguém, mas porque lá dentro tudo se ajustava tão perfeitamente. No comboio e no livro, as linhas eram de certo modo paralelas. Ler também era seguir assim, por um túnel escuro, e chegar, de quando em quando, a uma plataforma iluminada.
Teolinda Gersão, Histórias de Ver e Andar, Publicações Dom Quixote

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